O Protesto da Certidão de Dívida Ativa e o Desvio de Finalidade da Administração Pública

Artigo do Dr. Christopher Roisin publicado na revista eletrônica “Tributário.net” no dia 26/10/2005 e “Trinolex” no dia 24/08/2006.

Conforme vem sendo noticiado na mídia(1), a Administração Pública de diferentes esferas (Estaduais e Municipais) vem procedendo ao Protesto de Certidões de Dívida Ativa – CDA’s.

Essa postura da Fazenda Pública traz a necessidade de uma nova apreciação do sistema jurídico positivo, no que se refere às normas que aparentemente autorizariam o protesto de Certidões de Dívida Ativa.

No presente estudo analisaremos as normas que regem o instituto do Protesto (Lei n.º 9.492/97); a Certidão de Dívida Ativa; e, por fim, o regime jurídico de Direito Público, ao qual a Administração Pública deve subserviência absoluta, para ao final concluirmos que a sua utilização pela Administração, segundo a ótica dos atos administrativos, consubstancia-se em inegável desvio de finalidade.

I – Do protesto Reza o artigo 1º, da Lei n.º 9.492, de 10 de setembro de 1997, ipsis litteris:

“Art. 1º Protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida.” (g.n)

Como se vê, o protesto é o instituto cuja finalidade é provar a inadimplência e o descumprimento de uma obrigação documentada.

Este é o entendimento da doutrina, mesmo anterior à edição da Lei n.º 9.492/97. J. X. Carvalho de Mendonça define o protesto como:

“a formalidade extrajudicial, mais solene, destinada a servir de prova da apresentação da letra de câmbio, no tempo devido, para o aceite ou para pagamento, não tendo o portador, apesar de sua diligência, obtido este ou aquele.”(2)

Não destoa dessa orientação a doutrina atual, como se depreende dos seguintes conceitos fornecidos por Fábio Ulhoa Coelho e Silvio de Salvo Venosa respectivamente:

“…o protesto deve-se definir como ato praticado pelo credor, perante o competente cartório, para fins de incorporar ao título de crédito a prova de fato relevante para as relações cambiais.”(3)

“Em matéria cambial, o protesto é prova oficial e insubstituível da falta ou recusa, quer do aceite, quer do pagamento, sendo de suma importância para o portador do título e para os seus coobrigados de regresso.”(4)

Diante do exposto, dúvida não há de que o protesto tem como finalidade provar, atestar formalmente o inadimplemento e o descumprimento de obrigação representada em título ou documento de dívida.

Por outras palavras, a finalidade do protesto, revelada pela própria norma, é dúplice: i) comprovar o inadimplemento; e ii) comprovar o descumprimento de obrigação documentada.

I.I – Conteúdo da expressão “outros documentos de dívida” contida no artigo 1º supra citado.

Documento é todo escrito capaz de demonstrar a existência de um ato, fato ou negócio.(5)

Dívida, por sua vez, em sentido estrito, é toda quantia em dinheiro que uma pessoa deve a outra.(6)

Assim, pode-se concluir, com propriedade, que em face da Lei de Protestos, qualquer documento de divida elaborado segundo as prescrições do sistema são, a priori, protestáveis.

Nesse sentido, a CDA, como documento de dívida, seria, a priori, protestável, sendo essa a opinião de renomados juristas.(7)

“Indagação de que muita polêmica tem causado diz respeito à possibilidade de levar-se a protesto certidão de dívida ativa.
Após a reflexão e análise dos textos legais pertinentes à espécie, inclinamo-nos a responder afirmativamente. Vê-se, em primeiro, que os títulos de crédito em geral são protestáveis (…), e a C.D.A. também o é (…); segundo, inocorre qualquer regra proibitiva ou excepcionadora ao protesto de tal espécie de título executivo…”(8)

“…em razão da ampliação do universo de obrigações passíveis de ser protestadas, a Administração Pública está autorizada a requerer o registro do protesto de seus créditos – sejam os de natureza civil, tributária, sejam os decorrentes de aplicação de multas em razão da prática de ato contrário à sua legislação – desde que materializados em títulos ou qualquer outro documento de dívida.”(9)

Entretanto, como se demonstrará a seguir, esse entendimento isolado do instituto não encontra respaldo em nosso sistema jurídico, tendo em vista dissociar-se do regime jurídico de direito público a que deve se curvar a Administração Pública.

II – Da Certidão de Dívida Ativa – CDA – Do Regime Jurídico de Direito Público

Conforme preceitua o inciso VI, do artigo 585, do Código de Processo Civil, a Certidão de Dívida Ativa – CDA é um título executivo extrajudicial que consubstancia um crédito da Fazenda Pública, tributário ou não, com a aferição presumida de sua certeza e liquidez.(10)

Sobre o tema em estudo é indispensável ter presente o disposto no artigo 3º, da Lei n.º 6.830/80, ipsis litteris:

“Art. 3º – A Dívida Ativa regularmente inscrita goza da presunção de certeza e liquidez.”

Ora, a CDA por ser um título executivo, e mais, por gozar de presunção de certeza e liquidez (i) prova o crédito da Fazenda Pública, ao mesmo tempo em que (ii) atesta a inadimplência e o descumprimento de obrigações por parte do devedor.

Presente essas considerações, é preciso analisar a relação dos efeitos da CDA com a finalidade do protesto, do que, como se verá, decorrerá a falta de interesse da Fazenda Pública em protestá-la e, mais que isso, restará evidente que tal conduta configura um desvio de finalidade da Administração Fazendária.

III – Dos efeitos da CDA e da finalidade jurídica do Protesto – Evidente falta de interesse da Administração Fazendária

A CDA, por determinação legal, goza de presunção de certeza e liquidez, o que autoriza inclusive a sua execução, isto é, atesta a existência de um crédito em favor do Estado, que não foi honrado pelo devedor e, por isso, foi inscrito em Dívida Ativa.

Por outras palavras, a Certidão da Dívida Ativa é a prova do inadimplemento e do descumprimento das obrigações por parte daquele que figura na certidão.

Mas a função do protesto não é provar o inadimplemento e o descumprimento da obrigação constituída no documento?!

Ora, esse objetivo não é alcançado pela própria CDA? Então, qual seria o interesse da Fazenda Pública protestar uma Certidão de Dívida Ativa, a não ser o de promover a cobrança indireta dos débitos inscritos na CDA.

A imaginação da Administração Fazendária em sempre buscar novas formas de cobrança indireta dos seus créditos não é novidade. Trata-se mesmo de algo notório e, o que é pior, não raras vezes passa desapercebido pelos operadores do Direito. É oportuno trazer a colação os argumentos dos que admitem essa cobrança indireta, para, posteriormente, refutá-los:

“Considerando que a lei foi editada em momento em que a busca por meios mais simples, rápidos e menos onerosos para os interessados solucionarem conflitos de interesses é evidente, deve o administrador público, no interesse da população, utilizar-se dos meios mais rápidos e eficientes para receber os créditos da Fazenda Pública, possibilitando a implementação das políticas de governo. Estará assim agindo no interesse público.

A apresentação das certidões de dívida ativa aos serviços de protesto constitui meio legal de buscar a satisfação da dívida inscrita, sendo concedido prazo ao devedor para defesa.”(11)

Adiante sustenta o mesmo autor:

“Com efeito, exerce o protesto função probatória quanto ao inadimplemento do devedor. Contudo, e à evidência, ao se utilizarem dos serviços de protesto não objetivam os credores a lavratura e o registro do protesto a provar o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida. O escopo dos credores é a solução do conflito de interesses com o recebimento do que lhes é devido.”

Essas conclusões, todavia, são superficiais e não resistem ao confronto do instituto do protesto em face do Regime de Direito Publico ao qual se subsume a Administração Fazendária.

Nesse passo é mister repisar o artigo 1º, da Lei n.º 9.492/97:

“Art. 1º Protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida.”

Ora, a finalidade do protesto é legal, isto é, a própria lei descreve sua função no ordenamento jurídico, qual seja: provar a inadimplência e o descumprimento de obrigação.

Se a sua utilização gera, reflexamente, o pagamento das dívidas levadas a protesto, não se pode concluir que esta seja a sua finalidade. Em Direito, a obtenção dos fins não justifica a ilegalidade dos meios.

O fato de a Lei nº 9.492/97 tratar do pagamento do crédito no tabelionato, especialmente no artigo 19, não desnatura a sua função. O pagamento presta-se apenas para elidir o ato de protesto, isto é, proibir que o protesto exerça a sua função, que nada mais é do que provar a inadimplência e o descumprimento de obrigação documentada, com a publicidade que daí advém.

Ademais, se o particular, como é cediço, vale-se do protesto como meio indireto de cobrança de dívida, não se importando com a sua finalidade legal, por não haver proibição expressa quanto a tal conduta, o mesmo não pode ser feito pela Administração Pública, para quem o princípio da legalidade assume conotação bastante distinta.

IV – O protesto de CDA como desvio de finalidade da Administração Fazendária

Se para o particular o princípio da legalidade estabelece que ele pode fazer tudo o que a lei não proíbe – inclusive valer-se do protesto como forma de coerção indireta para o pagamento de dívida, o mesmo não se pode dizer da Administração Pública.

Com efeito, para a Administração Pública o princípio da legalidade estabelece que a ela só é dado fazer o que a lei determina, não ficando ao talante do administrador agir fora dos limites legais. Nesse sentido é a doutrina de Hely Lopes Meireles:

“Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza.
(…) a natureza da função pública e a finalidade do Estado impedem que seus agentes deixem de exercitar os poderes e de cumprir os deveres que a lei lhes impõe.”(12)

O Poder Público, ao agir, deve sempre se pautar segundo o interesse público determinado na própria lei, observando a finalidade legal dos institutos. Assim, não pode a Administração, ainda que buscando o interesse público, agir fora dos “trilhos” impostos pela norma.

Dessa forma, considerando-se que a CDA já prova o inadimplemento e o descumprimento de obrigação documental; e que a finalidade legal do protesto é exatamente a mesma, resta evidente a ausência de interesse jurídico da Administração Fazendária em levar a CDA a protesto.

Mais do que isso, caso a Administração Fazendária leve a protesto a CDA, o fará notoriamente com a finalidade de receber o crédito descrito no documento, desviando, portanto, a finalidade do instituto.

Ora, é inegável que a lei do protesto foi editada para o fim de provar a inadimplência do devedor, sendo esse um reclamo social, haja vista os serviços de proteção ao crédito. Dessa forma, a sua utilização para outra finalidade configura evidente desvio da vontade da lei, isto é, desvio de finalidade.

Se esse desvio é lícito aos particulares, porquanto não proibido, não o é para a Administração Fazendária, sendo conclusivas as seguintes palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, ipsis litteris:

“…o princípio da finalidade não é decorrência do princípio da legalidade. É mais que isto: é uma inerência dele; está nele contido, pois corresponde à aplicação da lei tal qual é; ou seja, na conformidade de sua razão de ser, do objetivo em vista do qual foi editada. Por isso se pode dizer que tomar uma lei como suporte para a prática de ato desconforme com a sua finalidade não é aplicar a lei; é desvirtuá-la; é burlar a lei sob o pretexto de cumpri-la. Daí por que os atos incursos neste vício – denominado ‘desvio de poder’ ou ‘desvio de finalidade’ – são nulos. Quem desatende ao fim legal desatende à própria lei.”(13)

Sobre o desvio de finalidade, são expressivas as seguintes palavras de Suzy Elizabeth Cavalcante Koury:

“todo instituto jurídico corre o risco de ter sua função desviada, ou seja, utilizada contrariamente às suas finalidades. Esse desvio de função consiste na falta de correspondência entre o fim perseguido pelas partes e o conteúdo que, segundo o ordenamento jurídico, é próprio da forma utilizada”.(14)

O próprio sistema jurídico positivo traz os meios pelos quais um crédito do Estado pode ser cobrado, qual seja: a execução fiscal, isto é, a execução de uma dívida inscrita em uma CDA. Burlar essa forma específica e expressa de cobrança, desvirtuando a finalidade do protesto, configura evidente desvio de finalidade.(15)

Anote-se, por fim, que a Fazenda Pública tem diversas prerrogativas materiais e processuais na busca da satisfação do seu crédito. Caso perceba que existem fundados receios de não receber o que lhe é devido, poderá inclusive propor medida cautelar fiscal, como meio legal de assegurar o futuro recebimento do seu crédito.

Se a Fazenda Pública não se vale dessas prerrogativas processuais, buscando a satisfação do seu crédito pelo protesto, como meio coercitivo, indireto e ilegal de cobrança da CDA, desvirtua as finalidades do instituto, agindo em evidente abuso de poder.

Portanto, na medida em que a Administração Pública deve observar os estritos termos da lei, além de lhe faltar interesse para levar uma CDA ao protesto, ao fazê-lo nitidamente desvia a finalidade legal do instituto e, por esta razão, sua conduta deve ser revista ou rechaçada pelo Judiciário.

Notas

(1) Leonardo Fuhrmann. Revista Consultor Jurídico, 7 de outubro de 2005; Laura Ignácio, Diário do Comércio, 05 de outubro de 2005; e Guilherme Lippelt Capozzi. Tributario.net., 19 de outubro de 2005, a título exemplificativo.

(2) J. X. Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, Rio de Janeiro: Freita Bastos, 1934.

(3) Fábio Ulho Coelho, Curso de Direito Comercial. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, v. 1, 2004, p. 415.

(4) Silvio de Salvo Venosa, O protesto de documentos de dívida (novo Código Civil). Informativo Migalhas, 02.02.2003.

(5) Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico. 15ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1998, p. 287. Em regra a dívida se manifesta em documento.

(6) Ibid Idem, p. 283.

(7) Não se olvida da suposta possibilidade de se protestar CDA para fins de pedido de abertura de falência, existindo inclusive precedentes noticiados por Rubens Requião in Curso de Direito Falimentar, 10ª ed. Saraiva: 1986, p. 93, com fundamento nas teses de J. Netto Armando e Fábio Konder Comparato. Este estudo não irá abordar a questão atinente à Lei de Falências, embora suas conclusões lhe sejam aplicáveis, com as devidas adaptações.

(8) Ermínio Amarildo Darold, Protesto Cambial, Curitiba: Juruá, 1998, p. 25.

(9) Cláudio Barroso Ribeiro, Protesto de créditos públicos inscritos ou não em dívida ativa. Artigo publicado no jus navigandi, out./2004.

(10) Cf. artigo 202, do Código Tributário Nacional e do §5º, do artigo 2º, da Lei n.º 6.830, de 22 de setembro de 1980.

(11) Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza, In “Os Serviços de Protesto e as Certidões de Dívida Ativa”.

(12) In Curso de Direito Administrativo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 82.

(13) In Curso de Direito Administrativo, 11ª edição, São Paulo: Malheiros, 1999, p. 64.

(14) In A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas, 1ª ed., São Paulo: Forense, 1993, p. 67.

(15) Seria diferente se o ordenamento jurídico previsse como finalidade do protesto a cobrança de dívidas.