Considerações sobre a responsabilidade civil na industrialização por encomenda
Artigo do Dr. Christopher Roisin publicado na revista eletrônica “Jus Navigandi” no dia 31/05/05.
A responsabilidade pelo depósito e pelo transporte da matéria prima e do produto final na industrialização por encomenda, em caso de furto ou roubo.
O presente artigo busca tratar da responsabilidade da empresa voltada à atividade de industrialização por encomenda, sobretudo no que toca aos bens de terceiros que se encontrem em sua posse, sob sua guarda e vigilância, em caso de perecimento[1], com ou sem culpa da empresa.
Para tanto, é mister definir a natureza jurídica da industrialização por encomenda, bem como analisar a responsabilidade da empresa sob dois aspectos básicos: i) quanto ao depósito da matéria prima e seu transporte; e ii) quanto à produção dos bens, seu depósito e seu transporte para o encomendante.
I – Natureza jurídica dos serviços na chamada industrialização por encomenda
Inicialmente é preciso que se identifique a natureza da atividade desenvolvida pelas empresas que atuam na chamada industrialização por encomenda aos seus clientes, com o fim de definir o seu regime jurídico.
As pessoas jurídicas que atuam na atividade de industrialização por encomenda são contratadas para executar a industrialização dos bens desejados por seus clientes, mediante a utilização de matéria-prima fornecida por eles ou adquirida pela própria pessoa jurídica industrial. Desta forma, temos que sua atividade consiste numa verdadeira empreitada.
O contrato de empreitada é aquele pelo qual um das partes compromete-se a realizar uma determinada obra, pessoalmente ou por intermédio de terceiros, mediante remuneração e sem relação de subordinação.
I.I – Espécies de empreitada e a responsabilidade do empreiteiro
Assim dispõe o artigo 610, do Código Civil, ipsis litteris:
“Art. 610. O empreiteiro de uma obra pode contribuir para ela só com seu trabalho ou com ele e os materiais.
§ 1o A obrigação de fornecer os materiais não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.” [g.n.]
O contrato de empreitada comporta duas espécies distintas, previstas no dispositivo acima transcrito, a saber: i) aquela em que o empreiteiro contribui apenas com o seu trabalho – empreitada de lavor; e ii) aquela em que o empreiteiro, além do seu trabalho, também fornece a matéria prima – empreitada mista.
A distinção é importante porque a responsabilidade do empreiteiro em cada uma das modalidades de empreitada é diferente.
Na empreitada de lavor, em que a empresa atua apenas com o seu trabalho, a matéria prima objeto do contrato é de propriedade do “dono da obra” (cliente), assim, o critério adotado pela lei no que tange à responsabilidade pelo seu perecimento é o da perda da coisa para o dono – res perit domino.
Nesse sentido, no caso de empreitada de lavor, se a matéria-prima perece antes da industrialização do produto e sem culpa da empresa, esta não será responsabilizada, porquanto quem sofre a perda é o encomendante, dono da mesma, por conta de quem correm os riscos do seu perecimento. Esse é o teor do artigo 612, do Código Civil, ipsis litteris:
“Art. 612. Se o empreiteiro só forneceu mão-de-obra, todos os riscos em que não tiver culpa correrão por conta do dono.”
Dessa forma, pode-se concluir que, em caso de perecimento ou deterioração da matéria-prima de terceiro em poder da empresa, sem culpa desta, não há que se falar em responsabilidade dela perante o cliente prejudicado.
Todavia, não se pode olvidar do conteúdo do artigo 617 do mesmo diploma normativo, em complementação ao que restou dito, cujo teor é, ipsis litteris:
“Art. 617. O empreiteiro é obrigado a pagar os materiais que recebeu, se por imperícia ou negligência os inutilizar.”
É dizer, a empresa será responsabilizada pela perda dos materiais que recebeu do cliente, quando agir com imperícia ou negligência, mas não responderá por eles quando sua perda decorrer de caso fortuito ou força maior.
Antes, porém, de explorar essas considerações, é preciso destacar o regime da empreitada mista. Nesta modalidade de empreitada, a empreiteira (indústria) fornece além do seu trabalho, a matéria prima que será objeto de industrialização.
Na empreitada mista a regra aplicável é exatamente a mesma, isto é, res perit domino, logo, a própria empresa suportará o perecimento ou a deterioração da matéria prima, tenha ou não agido com culpa (em sentido amplo). Nesse sentido é o artigo 611, do Código Civil:
“Art. 611. Quando o empreiteiro fornece os materiais, correm por sua conta os riscos até o momento da entrega da obra, a contento de quem a encomendou,se este não estiver em mora de receber. (…)”[2]
Presentes essas considerações iniciais, passaremos à análise da responsabilidade em caso de roubo e furto, especificamente no que tange à empreitada de lavor, já que na empreitada mista o problema da responsabilidade civil não se trava entre o encomendante e a empresa industrial, não sendo objeto do presente estudo.
II – Responsabilidade em caso de roubo e furto
É importante distinguir os crimes de roubo e furto, na medida em que são delitos muitas vezes confundidos na prática e que os efeitos da sua responsabilização civil são diversos.
O crime de roubo está previsto no artigo 157 do Código Penal Brasileiro, ipsis litteris:
“Art. 157 – Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:
Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
§ 1º – Na mesma pena incorre quem, logo depois de subtraída a coisa, emprega violência contra pessoa ou grave ameaça, a fim de assegurar a impunidade do crime ou a detenção da coisa para si ou para terceiro.” [g.n]
Por sua vez, o crime de furto está disciplinado no artigo 155 do mesmo diploma legal, nos seguintes termos:
“Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.” [g.n.]
Como se vê, tanto o roubo, quanto o furto configuram-se pela subtração de coisa alheia móvel.
O traço distintivo do roubo em relação ao furto, é que no primeiro a subtração é praticada mediante violência ou grave ameaça; no segundo a subtração é levada a efeito sem qualquer ato de violência física ou moral (ameaça).
Essa distinção é salutar em sede de responsabilidade civil, na medida em que o roubo implica invariavelmente na ausência de culpa por parte da vítima que perder a coisa que estava em seu poder (seja ela própria ou de terceiros).
Ora, o crime de roubo, porque praticado mediante violência ou grave ameaça à pessoa, é fato que, por si só, afasta o dever de indenizar daquele que tinha a posse da coisa, posto que não se poderia evitar a subtração.
Nesse sentido, confira alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça abaixo:
“DIREITO CIVIL. ROUBO COM EMPREGO DE ARMA DE FOGO. RESTAURANTE. MANOBRISTA. CASO FORTUITO E FORÇA MAIOR. INEVITABILIDADE. EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE DE INDENIZAR PRECEDENTES DA CORTE. RECURSO DESACOLHIDO.
I – A responsabilidade de indenizar, na ausência de pactuação em contrário, pode ser afastada pela prova da ocorrência de força maior, como tal se qualificando o roubo de objetos sob a guarda do devedor.
II – Segundo qualificada doutrina, que encontrou eco nesta Corte, caso fortuito é “o acidente produzido por força física ininteligente, em condições que não podiam ser previstas pelas partes” enquanto a força maior é “o fato de terceiro, que criou, para a inexecução da obrigação, um obstáculo, que a boa vontade do devedor não pode vencer”, com a observação de que o traço que os caracteriza não é a imprevisibilidade, mas a inevitabilidade.”[3] [g.n.]
“Responsabilidade civil – Indenização – Roubo de veículo, à mão armada, que estava sob a guarda de manobrista de restaurante – Força maior – Ocorrência – Impossibilidade de o detentor do automóvel evitar a subtração.
Se o cliente do restaurante entregou seu carro a manobrista para que este, na condição de guardião, o levasse até o estacionamento das proximidades, fica o restaurante na qualidade de depositário, sujeito a reparar o proprietário no caso de furto do veículo. No entanto, ocorrendo roubo à mão armada, verifica-se a circunstância de força maior, pois não teria o detentor como evitar a subtração, o que afasta a responsabilidade do depositário.”[4] [g.n.]
Com efeito, o roubo (por vezes chamado de “assalto”) configura verdadeiro caso fortuito ou força maior e, por força do artigo 393 e parágrafo único do Código Civil elide a responsabilidade. São estes os seus dizeres:
“Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”[5] [g.n.]
Desta feita, sempre que ocorrer o perecimento dos bens de propriedade dos terceiros, que estavam em poder da empresa por força do contrato de empreitada de lavor, em decorrência de crime de roubo, a responsabilidade da empreiteira somente ocorrerá se houver cláusula contratual expressa neste sentido.
Em se tratando de furto, o regime jurídico é diferente, porque neste crime não há submissão da pessoa à violência ou grave ameaça, mas negligência na guarda e custódia da coisa furtada.
Por outras palavras, em se tratando de furto, o agente criminoso atua às escuras, se aproveitando da desatenção da empresa industrial para com os bens guardados, ou mesmo da falta de segurança com que os guarda.
Nesse passo é oportuno trazer à colação o disposto no artigo 186, do Código Civil:
“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” [g.n.]
O Direito Civil brasileiro não faz distinção entre culpa grave, leve ou levíssima, para fins de impor a obrigação de indenizar, de sorte que mesmo a menor das culpas, havendo dano a alguém, implica na obrigação de reparar o prejuízo. A indenização não é medida pelo grau de culpa, mas pela extensão do dano.[6]
Dessa forma, a negligência quanto à guarda de coisa de outrem gera, em princípio, o dever de indenizar, em vista da chamada culpa pela custódia da coisa: “a culpa in custodiando caracteriza-se pela falta de atenção em relação a (…) coisa que estavam sob os cuidados do agente.”[7]
Por outras palavras, e em princípio, a empresa industrial (empreiteira) será responsabilizada pelo perecimento dos bens de terceiros que se encontravam em seu poder em decorrência do contrato de empreitada, quando o perecimento decorrer de furto. Essa orientação é ilustrada pelos seguintes julgados:
“INDENIZAÇÃO – Responsabilidade civil – Veículo – Furto simples – Culpa in vigilando – Automóvel que encontrava-se estacionado no estabelecimento de propriedade do réu – Verba devida – Recurso não provido.”[8] [g.n.]
“INDENIZAÇÃO – Responsabilidade civil – Veículo – Admissibilidade – Furto em estacionamento de estabelecimento comercial – Alegada inexistência de contrato de depósito – Irrelevância – Dever de vigilância e custódia – Gratuidade, ademais, aparente – Valor da comodidade embutido no preço das mercadorias -Verba devida – Recurso provido.”[9] [g.n.]
Em síntese conclusiva, o roubo dos bens de terceiros do estabelecimento da empresa industrial, em princípio, afastará o seu dever de indenizar. O furto, ao contrário, em regra, dará ensejo ao dever de indenizar, a menos que a empresa industrial comprove ter agido com plena diligência e prudência na guarda dos bens subtraídos, afastando por completo sua culpa, isto é, afastando a culpa in custodiando (o que, na prática, é de difícil comprovação).[10]
III – Responsabilidade no transporte
Partiremos da premissa que, como se trata de empreitada de lavor, o transporte da matéria prima até a empresa industrial se dá por conta do cliente encomendante, de modo que, nesta etapa do transporte, não há que se falar em qualquer responsabilidade da empreiteira.
Do recebimento da matéria prima até a sua transformação em produtos industrializados, os bens ficam sob a guarda da indústria, que sobre eles exerce mera detenção[11], aplicando-se, portanto, os comentários expendidos acima, nos itens I e II, isto é, apenas responderá se agir com negligência ou imperícia.
Resta analisarmos, dessa forma, a responsabilidade da empresa pela incolumidade dos produtos quando os mesmos são transportados, do seu estabelecimento para o do cliente encomendante, ou para local diverso contratado.
É preciso diferençar três situações: i) aquela em que a empresa industrial contrata empresa de transporte para entregar os produtos que produziu (terceirização do transporte); ii) aquela em que a própria indústria possui como seu objeto social o transporte das mercadorias que produz e o faz com aparato próprio; e iii) aquela em que o encomendante se compromete a retirar, por si ou por transportadora interposta, os produtos que encomendou.
III.I – Transporte feito por prestadora de serviços contratada pela própria indústria
Nesse modelo, a empresa de industrialização por encomenda celebra com transportadora por ela escolhida um contrato de transporte de cargas.
Destaca-se, deste modo, duas relações jurídicas existentes, totalmente distintas. A primeira entre a empreiteira e o seu cliente encomendante e a segunda entre a transportadora e a empresa industrial.
O contrato de transporte é aquele segundo o qual alguém se compromete a transportar de um lugar para outro, mediante retribuição, pessoas ou coisas (artigo 730, Código Civil).
A responsabilidade do transportador, em caso de transporte de coisas, está prevista expressamente nos artigos 749 e 750, do Código Civil, ipsis litteris:
“Art. 749. O transportador conduzirá a coisa ao seu destino, tomando todas as cautelas necessárias para mantê-la em bom estado e entregá-la no prazo ajustado ou previsto.”
“Art. 750. A responsabilidade do transportador, limitada ao valor constante do conhecimento, começa no momento em que ele, ou seus prepostos, recebem a coisa; termina quando é entregue ao destinatário, ou depositada em juízo, se aquele não for encontrado.” [g.n.]
Diante disso, pode-se dizer que, após celebrar o contrato de transporte, confiando à transportadora os produtos do seu cliente para a ele serem destinados em retorno, em tese, cessa para a empreiteira a responsabilidade sobre os mesmos[12], sendo esta transferida à transportadora.
Cumpre, nesse ponto repisar que a relação jurídica decorrente do contrato de transporte nasce entre a empresa e a transportadora contratada, sendo o cliente alheio a esse contrato.
Dessa forma, caso a mercadoria pereça por culpa da transportadora, a indústria poderá exigir dela o ressarcimento dos prejuízos a ela causados, mas a própria empreiteira deverá suportar a indenização devida ao cliente, na medida em que este não participou do contrato com a transportadora culpada pelo evento danoso.
Por outras palavras, a indústria suportará os danos causados ao cliente e ingressará com uma ação de regresso contra a transportadora para reaver o que despendeu por culpa desta.
É dizer, a empresa de qualquer modo terá que suportar um passivo em face de seu cliente.
Doutro lado, não será garantido que conseguirá se ressarcir da transportadora (falência desta, ausência de bens penhoráveis, etc).
Portanto, desde já, temos um grande ponto desfavorável nesta alternativa. Como opção para a empresa industrial ainda nesta hipótese, resta contratar apenas e tão somente transportadoras que tenham seguro da carga, que também contemple a hipótese de roubo e outros crimes, inclusive ocorridos dentro do seu depósito (transportadora).
Com efeito, a regra é a da responsabilidade do transportador pela perda ou perecimento dos bens levados ao transporte, todavia, em face do disposto no artigo 393[13], do Código Civil, essa responsabilidade pode ser afastada, caso o prejuízo advenha de caso fortuito ou força maior.
Como sabemos, o roubo está incluído dentre estas hipóteses, de tal sorte que na sua ocorrência (roubo de carga) a transportadora se exime de qualquer responsabilidade perante a indústria.
Neste sentido, a jurisprudência pátria:
“CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA REGRESSIVA. TRANSPORTE DE CARGA. ROUBO DE MERCADORIAS. FORÇA MAIOR. ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE.
I. O entendimento recentemente uniformizado na Colenda 2ª Seção do STJ é no sentido de que constitui motivo de força maior, a isentar de responsabilidade a transportadora, o roubo da carga sob sua guarda (REsp n. 435.865 – RJ, Rel. Min. Barros Monteiro, por maioria, julgado em 09.10.2002).
II. Ressalva do ponto de vista do relator.
III. Recurso especial não conhecido.”[14]
“CIVIL. INDENIZAÇÃO. TRANSPORTADORA. ROUBO DE CARGA. FORÇA MAIOR. RESPONSABILIDADE. EXCLUSÃO.
1 – O roubo de mercadoria durante o transporte caracteriza-se como força maior, apta a excluir a responsabilidade da empresa transportadora perante a seguradora do proprietário da carga indenizada. Precedentes iterativos da Terceira e Quarta Turmas.
2 – Recurso especial conhecido e provido.”[15] [g.n.]
Nesse ponto surge questão interessante. Se a transportadora não pode ser responsabilizada pelo prejuízo decorrente de caso fortuito ou força maior, como fica a relação jurídica entre a empreiteira e o cliente, já que, novamente, via de regra, a indústria se compromete a entregar os produtos ao seu cliente, sendo a terceirização do transporte totalmente alheia à vontade deste?
Sobre essa questão duas são as possibilidades:
i) a empresa não responderá pela perda dos objetos industrializados, uma vez que em ocorrendo caso fortuito ou força maior o evento seria inevitável para qualquer um, fosse o transporte terceirizado, próprio ou até mesmo do próprio cliente; ou
ii) a empresa poderá ser chamada a arcar com os prejuízos na medida em que escolheu mal a transportadora – culpa in eligendo. Essa discussão, entretanto, deverá ser travada em eventual processo judicial.
Todavia, pelo simples fato de haver risco, ainda que o mesmo em algumas circunstâncias possa ser considerado remoto, por si só, já se impõe a necessidade de implementação de um novo modelo negocial.
III.II – Transporte feito pela própria indústria, sem terceirização
Neste caso, tendo sido contratado que a própria indústria, por si, entregaria os bens no local eleito pelo encomendante, a seu cargo correrão todos os riscos pelo transporte, aplicando-se as regras já abordadas.
III.III – Transporte feito por empresa contratada pelo cliente ou por ele próprio
Nesta situação, a empresa que fornece a industrialização por encomenda se exime de qualquer responsabilidade[16] a partir da entrega da coisa à transportadora contratada pelo cliente ou ao próprio cliente, não havendo razão para maiores considerações.
IV –Cláusula de não indenizar
É possível se estabelecer no contrato de industrialização por encomenda (empreitada) uma cláusula que exima de responsabilidade a empreiteira em caso de furto ou roubo?
Pois bem. A responsabilidade pelos danos causados por uma pessoa a outra decorre de lei, assim, não é possível formular uma cláusula de exclusão da responsabilidade,sendo, todavia, possível, estabelecer uma cláusula de não indenizar, isto é, de não pagar a indenização acaso devida.
Nos dizeres de Silvio de Salvo Venosa, a cláusula de não indenizar é aquela “pela qual uma das partes contratantes declara que não será responsável por danos emergentes do contrato, seu inadimplemento total ou parcial.”[17]
Diferencia-se da “cláusula de irresponsabilidade” na medida em que esta pretende afastar a aplicação da lei que impõe a responsabilidade do causador do dano e por este motivo é juridicamente impossível no direito brasileiro.
Embora admitida, a “cláusula de não indenizar” sofre limitações, só podendo ser adotada em contratos que tratem de direitos estritamente privados, patrimoniais e disponíveis. Diante disso, pode ser aplicada no contrato entre a empresa industrial e seus clientes encomendantes.[18]
V – Mora
Por fim, é mister lembrar que no caso de mora (atraso contratual) da empresa na entrega (ou disponibilização) dos produtos por ela industrializados aos seus clientes,haverá responsabilidade dela pelos prejuízos decorrentes do seu inadimplemento, mesmo quando decorrerem de caso fortuito ou força maior, exceto se provar que esses prejuízos ocorreriam mesmo se tivesse cumprido a sua obrigação em tempo.
Sobre o tema, é importante ter presente o disposto no artigo 395, do Código Civil,ipsis litteris:
“Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
Parágrafo único. Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos.” [g.n.]
“Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.”
Exemplificando. Se a empresa industrial não entrega os produtos a que se obrigou a industrializar para o encomendante com a matéria prima por este fornecida, a partir do dia seguinte ao vencimento do prazo, mesmo ocorrendo roubo da matéria prima em seu poder, a mesma poderá ter que indenizar o cliente, simplesmente porque já devia ter cumprido sua obrigação contratual e não o fez.
VI – Contrato de seguro
Inicialmente é mister trazer à baila o disposto no artigo 757, do Código Civil, ipsis litteris:
“Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.”
A celebração de contrato de seguro é sempre possível, seja pela própria indústria, seja por seus clientes, para garantir qualquer interesse legítimo, como o é aquele discutido neste artigo.
Entretanto, exigir-se que o cliente celebre contrato de seguro para salvaguardar os seus interesses em face de eventual roubo ou furto dos seus bens em poder da indústria contratada, porquanto seja possível juridicamente, talvez não seja muito bem visto comercialmente. É que neste caso o contrato de seguro implicaria num custo a mais para o cliente da empresa, o que poderia acarretar o seu desinteresse na contratação da mesma.
A nosso ver, existem outras alternativas tão eficazes quanto esta e que não encontrarão tamanha resistência comercial, como veremos mais adiante.
VII – Conclusões
→A empresa contratada para prestar serviço de industrialização por encomenda não assume qualquer responsabilidade pelo transporte da matéria-prima, no que se refere à chegada desta ao seu estabelecimento, quando o cliente se obrigar a fornecer e entregar referida matéria-prima;
→Uma vez dentro do seu estabelecimento, por se tratar de empreitada de lavor, a indústria não assume responsabilidade pelo perecimento dos bens, exceto se tiver agido com imperícia e/ou negligência;
→Ainda acerca da responsabilidade da empresa quanto aos bens dentro do seu estabelecimento, esta não assume qualquer responsabilidade se o perecimento dos mesmos decorrer de caso fortuito ou força maior;
→ Neste sentido, no caso de roubo a indústria não assumirá responsabilidade pelos bens, quadro que se altera no caso de furto; hipótese em que, em princípio, dará ensejo à responsabilidade da empreiteira;
→ Havendo mora na entrega por parte da indústria, ou seja, caso ela deixe de entregar (ou disponibilizar) os bens no prazo contratual, em todas as hipóteses, ou seja, ainda que ocorra caso fortuito, força maior, roubo, ela será responsabilizada;
→ Considerando-se que a empresa, após fazer a industrialização por encomenda, também se responsabiliza pela entrega do produto final ao cliente, por si ou por transportadora contratada, a indústria assume plena responsabilidade pelo contrato de transporte;
→ A questão da empreiteira contratar transportadora terceirizada apenas lhe dará azo a ressarcir-se dos valores que por ventura incorrer para indenizar seus clientes, caso haja culpa em sentido amplo da transportadora;
→ Ocorrendo roubo da carga, a transportadora se eximirá de qualquer responsabilidade em face da indústria, mas esta, ainda assim, no pior cenário, corre o risco de ter que indenizar seu cliente, a menos que este tenha concordado ou anuído com a eleição daquela determinada transportadora;
VIII – Opinião Legal
Desta feita, em razão das possíveis contingências a que a empresa industrial pode incorrer em razão das suas responsabilidades na industrialização por encomenda, podem ser tomadas as seguintes providências a fim de elidi-las, confira:
a) sempre deixar uma margem de segurança no prazo assumido para entrega dos produtos, para evitar a ocorrência da mora;
b) alterar contrato inserindo cláusula de não indenizar na hipótese de furto, considerando-se que o estabelecimento da empresa deva atender aos padrões normais de segurança;
c) alterar os contratos de modo que a entrega dos produtos industrializados por encomenda aos clientes, se dê pela modalidade FOB – Free on board, pela qual fica a cargo do cliente encomendante a retirada do produto do estabelecimento da indústria. Essa decisão, todavia, é comercial e depende da viabilidade mercadológica de se adotar tal modelo negocial.
c.1) alterar os contratos de modo que caso o cliente não concordar com o modelo padrão FOB, que a entrega pela modalidade CIF será realizada por transportadora previamente determinada no contrato, com a qual o cliente expressamente não só concorda, como também exonera a indústria do dever de indenizá-lo por prejuízos decorrentes do transporte prestados pela transportadora eleita.
Todavia, se ambas as alternativas c) e c.1) acima não forem viáveis mercadologicamente, aventamos a seguinte hipótese:
d) contratar apenas e tão somente transportadoras que tenham seguro da carga, que também contemple a hipótese de roubo e outros crimes, inclusive ocorridos dentro do seu depósito. Logicamente, nesta hipótese a indústria deverá considerar o risco de se incorrer na contingência (roubo da carga) e o preço do prêmio do seguro a ser pago, o que aumentará o custo da sua atividade.
Em suma, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, esperamos ter contribuído, ao menos no que toca à concientização das empresas que atuam na industrialização por encomenda de seus clientes.
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[1] “Na terminologia jurídica (…) é o vocábulo empregado, em relação às coisas e direitos que deixam de exisitr, na acepção de perda, destruição e extinção.” E continua o autor “assim sendo, na evidência do perecimento há sempre uma perdaou destruição, que vem mostrar materialmente, a falta de vida ou a inexistência jurídica da coisa ou do direito.” [sem negrito no original] (in De Plácido e Silva,Vocabulário Jurídico, 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 602.
[2] No item XXXXXX será abordada a responsabilidade em caso de mora do empreiteiro e do dono da obra.
[3] REsp 258.707/SP, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 22.08.2000, DJ 25.09.2000 p. 111
[4] TJSP – AP. 129.278-4/3 – 6ª Câmara – Rel. Desa. Luiza Galvão Lopes j. 01.08.2002.
[5] Note-se que é possível, contratualmente, estabelecer a responsabilidade do devedor mesmo nos casos de força maior ou caso fortuito, mas isso dependerá sempre de cláusula expressa pactuada pelas partes.
[6] Sergio Cavalieri Filho, in Programa de responsabilidade civil. 2ª ed. São Paulo: Melheiros, 2000, p. 42.
[7] Ibid idem, mesma página.
[8] Relator: Guimarães e Souza – Apelação Cível n. 207.873-1 – São Paulo – 17.05.94
[9] Relator: Alexandre Germano – Apelação Cível n. 211.135-1 – Santo André – 14.06.94
[10] Se o furto das mercadorias, entretanto, é levado a cabo por empregado da empresa, esta sempre será culpada pelos prejuízos causados a terceiros, por ter escolhido mal o profissional que lhe presta serviços – culpa in eligendo.
[11] “Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas.” (Código Civil)
[12] Note-se que essa cessação da responsabilidade diz respeito apenas à detenção da coisa, uma vez que eventuais danos existentes na coisa decorrentes do processo produtivo ou do armazenamento pela indústria não elidirão sua responsabilidade.
[13] “Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”
[14] REsp 433.738/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 12.11.2002, DJ 17.02.2003 p. 287
[15] REsp 222.821/SP, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 17.06.2004, DJ 01.07.2004 p. 198
[16] Ressalvado o que se disse na nota de roda pé n.º 12.
[17] In Direito Civil – Responsabilidade civil. 5ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2005, p. 67.
[18] Essa cláusula, entretanto, não pode servir para limitar elementos essenciais do contrato. Assim, não se cogita de um contrato de seguro em que à seguradora se reserva cláusula de não indenizar. Também não se admite essa cláusula em caso de crime ou ato doloso da parte beneficiada pela cláusula, sob pena de autorizar o agente a praticar ato ilícito, contrariando as disposições legais.