Atividade de Beneficiamento – Conflito de Competência entre IPI e ISS

Artigo da Dra. Fabiana Gragnani Barbosa  publicado nas revistas eletrônicas “Tributário Net” no dia 24/07/2006, “Netlegis” no dia 25/07/2006, “APET” no dia 10/08/2006, “Jus Navigandi” no dia 17/08/2006, “Acionista” no dia 22/08/2006, “Fiscosoft” no dia 31/10/2006 e “Trinolex” no dia 14/11/2006.

Atividade de Beneficiamento – Conflito de Competência entre IPI e ISS

I- Considerações Iniciais

Iniciamos nosso estudo fazendo referência à Lei Complementar (LC) nº 116/03, de 31 de julho de 2.003, que inseriu novas sistemáticas sobre a cobrança do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS em nosso ordenamento jurídico.

Dentre as novas disposições trazidas pela LC 116/03, uma delas, a nosso ver, traz maior complexidade à questão sobre o conflito de incidência entre o IPI e o ISS, qual seja, alteração da redação do antigo item 72 da lista de serviços anexa ao Decreto Lei nº 406/68 (na redação da LC nº 56/87), agora subitem 14.05 da lista anexa à LC 116/03.

Vejamos a redação do item 72 da lista anexa ao DL 406/68, lista esta substituída pela lista de serviços anexa à LC nº 116/03:

“Art. 1° (…)
72. Recondicionamento, acondicionamento, pintura, beneficiamento, lavagem, secagem, tingimento, galvanoplastia, anodização, corte, recorte, polimento, plastificação e congêneres, de objetos não destinados à industrialização ou comercialização;” (g.n.)

Vejamos agora a redação do subitem 14.05 da lista de serviços anexa à LC 116/03:

“Art. 1º (…)
14.05 – Restauração, recondicionamento, acondicionamento, pintura,beneficiamento, lavagem, secagem, tingimento, galvanoplastia, anodização, corte, recorte, polimento, plastificação e congêneres, de objetos quaisquer;” (g.n.)

A alteração em comento é de grande importância, visto que excluiu do mencionado texto a ressalva que atribuía tratamento jurídico específico à atividade de beneficiamento, e outras como acondicionamento, pintura, lavagem, secagem,quando realizadas em objeto destinado à industrialização ou comercialização, afastando, portanto, a incidência do IPI naquelas atividades destinadas a consumidor final.

Como resultado, temos o surgimento de posicionamentos antagônicos por parte dos fiscos federal e municipais acerca do assunto. Como será exibido abaixo, tem sido noticiado entendimento de que o IPI incidiria sobre a atividade de beneficiamento, assim como sobre as demais mencionadas no mesmo item 72, mesmo que previstas na lista de serviços anexa à LC 116/03, desde que reunidas as características de “industrialização”.

Entretanto, conforme acreditamos, iremos demonstrar no presente estudo que tal assertiva carece de juridicidade, tendo em vista que apenas o ISS deve incidir sobre os serviços relacionados na lista anexa à LC 116/03, independente da alteração introduzida na LC 116/03, eis que o referida alteração da lista anexa não possui o condão de modificar os pressupostos constitucionais de incidência desses impostos.

Antes de tratarmos na questão sobre o conflito entre o ISS e o IPI de per si, faz-se necessário definirmos, corretamente, a atividade de beneficiamento, objeto de nosso estudo.

II- Definição do termo “Beneficiamento”

Para a exata compreensão do termo “beneficiamento”, é imprescindível a análise da redação do artigo 4º do Regulamento do IPI (RIPI), aprovado pelo Decreto nº 4.544, de 26.12.02, o qual considera o “beneficiamento” como uma das operações que caracterizam a industrialização.

Vejamos a redação do inciso II do artigo 4º do RIPI:
“Art. 4º Caracteriza industrialização qualquer operação que modifique a natureza, o funcionamento, o acabamento, a apresentação ou a finalidade do produto, ou o aperfeiçoe para consumo, tal como:
(…)
II – a que importe em modificar, aperfeiçoar ou, de qualquer forma, alterar o funcionamento, a utilização, o acabamento ou a aparência do produto (beneficiamento); (…)” (g.n.)

Verifica-se que esta atividade pressupõe a existência de um produto que embora sofra um processo industrial, não tem sua natureza alterada. Nesse sentido, vejamos parte do Parecer Normativo (PN) CST nº 398/71:

“PARECER NORMATIVO CST Nº 398/71
IPI
INDUSTRIALIZAÇÃO
TRANSFORMAÇÃO
A obtenção da madeira serrada ou aparelhada resulta em uma operação que, “exercida sobre produto intermediário” – a madeira em bruto (Pos. 4403 – resulta em espécie nova (Pos. 4405): é, pois, de transformação que se trata. O beneficiamento não acarreta nova classificação fiscal para o produto.
(…)
4. A diferença mais marcante entre essas duas operações encontramo-la na própria definição fiscal.  E esta diferença está em quer na “transformação”, que imporá na obtenção de espécie nova,  há um deslocamento do produto primitivo (matéria-prima ou produto intermediário) para nova classificação fiscal (posição ou inciso diferente);no “beneficiamento”, o produto sofre apenas um “melhoramento”, sem que a sua classificação se altere (v. RIPI, art. 1º, incs. I e II). (…)” (g.n.)

Embora, num primeiro momento, a definição e exemplificação da operação pareçam simples (ex.: retrabalho em móveis, impermeabilização de tecido, etc.), várias decisões administrativas foram publicadas com o intuito de esclarecer aos contribuintes a correta aplicação do termo “beneficiamento” às operações realizadas.

Nesse sentido, temos o PN CST nº 157/71 que decide acerca da atividade de serigrafia (silk screen[1]). De acordo com citado PN, o estabelecimento que exerce a atividade serigráfica será considerado industrial, quando exercer a operação de transformação (confecção da tela, para terceiros, executando ou não a respectiva gravação), e a de beneficiamento (quando executar apenas a  gravação em produtos de terceiros, usando telas de sua propriedade).

Temos também a decisão constante do PN CST nº 154/71, que considera a colocação de fechaduras, puxadores e porta-etiquetas, de fabricação do próprio estabelecimento industrial, em armários, fichários e arquivos, adquiridos semi-acabados de terceiros, como operação de beneficiamento. A interpretação é de que a complementação dos produtos semi-acabados com os acessórios citados, caracteriza o beneficiamento, visto que se trata de produto preexistente que, mantendo sua individualidade, tem aperfeiçoado seu funcionamento, utilização, acabamento e aparência exterior.

Outra situação merecedora de análise pela Coordenação do Sistema de Tributação, diz respeito às operações executadas sobre chapas de ferro e aço. A decisão constante do Parecer Normativo CST nº 300/70 esclarece quais das operações pertinentes ao setor, são, efetivamente, caracterizadas como beneficiamento, e quais delas, são excluídas desse conceito. As operações que tornam as chapas de ferro ou aço onduladas, as que lhes dão formas diferentes de retangular ou quadrada, tais como, discos ou perfilados, as que lhes modificam a espessura, tais como, desbastes ou laminação, constituem, evidentemente, operação de beneficiamento. Já o desbobinamento e o corte das chapas, com mera finalidade de reduzi-las a tamanho menor, sem modificação da espessura, mantida a forma original, retangular ou quadrada, estão fora deste conceito.

Pode-se dizer, portanto, que o beneficiamento pressupõe a preexistência de um produto que tem aperfeiçoado o seu funcionamento, utilização, acabamento, mas permanece com sua identidade original.

III – Lei Complementar – Competência

Outro ponto que merece destaque é o papel que a lei complementar ocupa em nosso sistema tributário nacional. De acordo com a Constituição Federal de 1988 (CF/88), em seu artigo 146, cabe a esta espécie normativa, além de dispor sobre conflitos de competência em matéria tributária entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária.

Dentre estas normas gerais, estão aquelas sobre definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados na CF/88, sobre os respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes.

Vale dizer, a lei complementar possibilita uma maior compreensão dos elementos essenciais do fato gerador de cada um dos impostos, além de criar limites a serem observados na definição do fato gerador e da respectiva base de cálculo dos tributos, garantindo ao contribuinte, dessa forma, maior proteção contra eventuais excessos por parte do legislador ordinário.

IV- IPI (Industrialização) X ISS (Prestação de Serviços)

Feitos tais esclarecimentos, voltemos ao mencionado conflito entre ISS e o IPI. De acordo com Aires F. Barreto[2], “as genéricas definições legais das hipóteses de industrialização ora tangenciam, ora invadem, ora se confundem parcialmente, com as de prestação de serviços.”

Especificamente sobre a atividade de “beneficiamento”, considerada como atividade industrial nos termos do artigo 4º, inciso II do Regulamento do IPI[3], reiteramos que a edição da LC 116/03 trouxe maior complexidade ao assunto.

Durante a vigência do DL nº 406/68, a questão sobre a incidência do IPI ou do ISS sobre determinada operação era de certa forma tranquila, visto que a revogada LC nº 56/87 vinculava o fato gerador do ISS (beneficiamento) à destinação dos produtos beneficiados.

Da análise do item 72 da lista de serviços anexa ao DL 406/68 (na redação da LC 56/87) retro citado, nota-se que o ISS não incidia quando o produto beneficiado fosse destinado à industrialização ou comercialização. Com efeito, a atividade ficava sujeita somente às normas legais vigentes para o IPI e para o ICMS. Por exclusão, tinha-se que o ISS só incidiria quando o produto beneficiado fosse destinado ao uso ou consumo do encomendante.

Todavia, com o advento da Lei Complementar nº 116/03 o assunto tornou-se mais complexo, em função da alteração da antiga redação do item 72, agora subitem 14.05 da lista anexa ao artigo 1º da LC 116/03, cuja redação transcrevemos no item “I” deste texto.

Se compararmos a redação do subitem 14.05 da LC nº 116/03 com a do antigo item 72 do DL nº 406/68, verifica-se que a atual não vincula a incidência do ISS à destinação do objeto sujeito ao beneficiamento.

Numa leitura mais afoita, poder-se-ia inferir que o ISS incidirá sobre o valor cobrado pelo beneficiamento, qualquer que seja a destinação do bem. Por esta interpretação, a pessoa jurídica responsável pelo beneficiamento de produto destinado à futura comercialização, ficará sujeita não só ao recolhimento deste imposto (ISS), mas também do IPI (industrialização) e do ICMS.

Não por coincidência, esta foi justamente a leitura dada à norma, por parte da Secretaria da Receita Federal, por ocasião da Solução de Consulta nº 350/04, da 10ª Região Fiscal de Tributação, confira:

“Processo de Consulta nº 350/04
Órgão: Superintendência Regional da Receita Federal – SRRF / 10a. Região Fiscal
Assunto: Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI
Ementa: CAMPO DE INCIDÊNCIA. OPERAÇÃO DE INDUSTRIALIZAÇÃO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO SUJEITO AO ISS. IRRELEVÂNCIA. As operações de restauração, conserto e beneficiamento de produtos, realizadas mediante galvanoplastia, classificam-se como industrialização, consoante o art. 4º do RIPI/2002, somente escapando ao campo de incidência do IPI nos casos em que restar configurada alguma das hipóteses plasmadas no art. 5º do mesmo regulamento. O fato de uma operação constar da lista anexa à Lei Complementar nº 116, de 2003, caracterizando, dessarte, prestação de serviço para efeito de incidência do ISS, não impede que essa mesma operação seja enquadrada como industrialização, estando incluída, também, no campo de incidência do IPI.
DISPOSITIVOS LEGAIS: Lei Complementar nº 116, de 2003; Decreto nº 4.544, de 2002, arts. 4º, 5º e 7º; Parecer Normativo CST nº 253, de 1970; Parecer Normativo CST nº 83, de 1977.
VERA LÚCIA RIBEIRO CONDE – Chefe (Data da Decisão: 19.10.2004   23.11.2004).” (g.n.)

Entretanto, a interpretação acima não guarda sintonia com o sistema tributário nacional nem tampouco com as hipóteses normativas de cada um dos tributos em questão: ISS e IPI.

Vale dizer, a exclusão da destinação do objeto do subitem 14.05 da lista de serviços anexa à LC 116/93, é irrelevante para efeito da incidência do ISS. Para Ayres F. Barreto[4], com a criação do ISS, “não pode mais a lei federal ser ampliativa, nem lassa, ao conceituar industrialização. Não pode mais fazê-lo abrangendo qualquer prestação de serviços, sob pena de inconstitucionalidade.”

Além disso, não se pode esquecer que a caracterização de determinada atividade como industrial e, consequentemente, como fato gerador do IPI, depende da destinação do produto sobre a qual é desenvolvida. Vale dizer, um beneficiamento realizado sobre um produto destinado ao comércio, é tido como operação industrial. Por outro lado, o mesmo beneficiamento realizado sobre objeto idêntico de propriedade do encomendante, sem destinação comercial, é tido simplesmente como um serviço (fato gerador do ISS).

Ressalta-se, entretanto, que embora o critério da competência e o da destinação do produto final sejam em nosso entender os mais coerentes, a sua adoção pode ensejar futura contingência junto ao fisco municipal e federal.

De qualquer maneira, lembramos que encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei Complementar – PLP nº 289/2005, que altera a redação do subitem 14.05 da Lei Complementar nº 116/2003, introduzindo nele a expressão “de bens não destinados à industrialização ou comercialização”.

Mesmo que não seja esta a redação definitiva do texto a ser aprovado, a intenção do legislador quando propôs a referida modificação, foi a de esclarecer o assunto.

É claro que não podemos deixar de considerar a hipótese da não-aprovação do mencionado PLP. Neste caso, embora seja evidente a permanência da discussão sobre o tema, nosso entendimento continua no sentido da observância do critério da destinação do objeto beneficiado para definição da incidência do ISS ou do IPI.

V- Conclusão

Sendo assim, podemos concluir que embora tenhamos uma série de atividades que possam gerar conflito de incidência entre o IPI e o ISS, principalmente com a edição da LC nº 116/03 que extinguiu as ressalvas sobre a incidência do ISS existentes na lista de serviço, devemos observar sempre a destinação do produto final.

Ou seja, se a atividade de beneficiamento estiver inserida em processo industrial, dela resultando um produto industrializado a ser posteriormente comercializado, esta será considerada uma operação industrial, sujeita ao IPI.

Se, do contrário, o beneficiamento for realizado sob encomenda, a fim de atender as necessidades do consumidor final, será, portanto, considerado como prestação de serviço, sujeito ao ISS.

A intenção do fisco municipal e do federal, em exigirem o recolhimento do ISS e do IPI sobre as atividades do subitem 14.05 do artigo 1º da LC 116/03, em função da alteração da ressalva nele constante, independentemente de qual seja o resultado final do processo, não pode prevalecer. Como vimos anteriormente, não se pode ter a incidência de dois impostos de competências diversas sobre o mesmo fato, salvo se a própria Constituição Federal assim o permitir.

De qualquer maneira, para se resguardar de eventuais contingências junto aos fiscos federal e/ou municipais, deve o contribuinte, antes da adoção de qualquer procedimento, ajuizar medida judicial preventiva, objetivando (i) garantir a utilização do critério da destinação do produto final e (ii) elidir eventual autuação fiscal, seguida ou não de consulta formal sobre o tema junto a estes órgãos arrecadatórios.

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[1] Serigrafia ou silk-screen é um processo de impressão no qual a tinta é vazada – pela pressão de um rodo ou puxador – através de uma tela preparada. A tela, normalmente de seda ou náilon, é esticada em um bastidor de madeira ou aço. Os pontos escuros da matriz ficam vazados na tela, e os pontos claros (ou de outra cor) são impermeabilizados por uma emulsão fotossensível ou uma película recortada (definição Wikipédia, a enciclopédia livre).
[2] Aires F. Barreto, “ISS na Constituição e na lei”, São Paulo, Dialética, 2003, p. 119.
[3] “Art. 4º Caracteriza industrialização qualquer operação que modifique a natureza, o funcionamento, o acabamento, a apresentação ou a finalidade do produto, ou o aperfeiçoe para consumo, tal como: (…)
II – a que importe em modificar, aperfeiçoar ou, de qualquer forma, alterar o funcionamento, a utilização, o acabamento ou a aparência do produto (beneficiamento); (…)” (g.n.)
[4] In, ISS na Constituição e na Lei, Dialética, p. 119.