O adequado tratamento dos atos cooperativos auxiliares
Artigo do advogado Hugo Netto publicado na revistas eletrônicas Consultor Jurídico (www.conjur.com.br) e “Netlegis” (www.netlegis.com.br) em 20/03/2006, e na revista eletrônica “Jus Navigandi” (www.jusnavigandi.com.br) e Trinolex (www.trinolex.com.br) no dia 21/03/2006.
O ADEQUADO TRATAMENTO DOS ATOS COOPERATIVOS AUXILIARES NA DESTINAÇÃO DO RESULTADO DO EXERCÍCIO DAS SOCIEDADES COOPERATIVAS
Tema de discussão recorrente na doutrina cooperativista é a classificação das operações realizadas pelas Sociedades Cooperativas em atos cooperativos e atos não-cooperativos, principalmente no que diz respeito aos denominados “atos cooperativos auxiliares”, aos quais notamos que tanto a doutrina quanto os Tribunais apresentam grande dificuldade em definir sua classificação como ato cooperativo ou não-cooperativo.
A correta classificação dos atos cooperativos auxiliares tem diversas implicações no dia-a-dia das Sociedades Cooperativas, desde repercussões na contabilização dos resultados decorrentes da sua realização, passando pela questão da não incidência de determinados tributos sobre os resultados de atos cooperativos, e, ainda, repercussão societária, no que tange à destinação destes resultados, tema este que será objeto do presente estudo.
Com o intuito de abordar de forma clara e didática os aspectos específicos referentes à destinação dos resultados do exercício das Sociedades Cooperativas, mais especificamente em relação aos atos cooperativos auxiliares, dividiremos nossos comentários em tópicos que tratarão, complementarmente, dos resultados de atos cooperativos e de atos não-cooperativos.
1. DESTINAÇÃO DOS RESULTADOS DE ATOS COOPERATIVOS
As Sociedades Cooperativas são entidades sem fins lucrativos, que conforme disposição da Lei no 5.764/71 (Lei das Cooperativas), em seu artigo 4º, são constituídas com a finalidade de prestar serviços aos seus associados (cooperados), e apresentam como característica peculiar, dentre outras, o retorno das sobras líquidas aos cooperados, conforme podemos depreender da leitura do dispositivo legal acima mencionado, in verbis:
“Art. 4º. As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:
(…)
VII – retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado, salvo deliberação em contrário da Assembléia Geral.”. (grifamos)
Significa dizer que, se ao final do exercício social a cooperativa apurar sobras, decorrentes da realização de atos cooperativos, ou seja, se seus ingressos superarem os dispêndios, tal resultado poderá ser distribuído aos cooperados na razão das operações realizadas por eles.
Cumpre esclarecer, contudo, que tal distribuição apenas poderá ser efetuada após terem sido realizadas as destinações legais previstas no artigo 28, da Lei das Cooperativas, quais sejam, 10% das sobras líquidas do exercício para o Fundo de Reserva (art. 28, I) e 5% das sobras líquidas do exercício para o Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social – FATES (art. 28, II), não obstante a possibilidade de criação de outros fundos pela Assembléia Geral, com recursos destinados a fins específicos (art. 28, § 1º).
Raciocínio idêntico, mas de forma inversa, se aplica aos casos em que os dispêndios forem superiores aos ingressos, resultando em perda no período. De acordo com o artigo 80, da Lei das Cooperativas, as despesas da sociedade serão cobertas pelos associados mediante rateio na proporção direta da fruição de serviços, desde que o Fundo de Reserva seja insuficiente para sua cobertura.
Neste mesmo sentido são as orientações do Conselho Federal de Contabilidade (CFC), que através da Resolução no 944/02 aprovou a NBC T 10.21 – “Dos Aspectos Contábeis Específicos das Entidades Cooperativas Operadoras de Planos de Assistência à Saúde”, conforme itens 1.9 e 2.7, abaixo transcritos:
“10.21.1.9 – As Entidades Cooperativas Operadoras de Planos de Assistência àSaúde devem distribuir as sobras líquidas aos seus associados de acordo com a produção de bens ou serviços por eles entregues, em função do volume de fornecimento de bens de consumo e insumos, dentro do exercício social, salvo deliberação em contrário da assembléia geral.”. (grifamos)
“10.21.2.7 – As perdas apuradas no exercício, não-cobertas pela Reserva Legal, serão rateadas entre os associados, conforme disposições estatutárias e legais e registradas em conta retificadora do Patrimônio Líquido até deliberação da assembléia geral, em conformidade com a NBC T 3.2 e legislação aplicável e específica do setor.”. (grifamos)
Vale ressaltar que as disposições a que nos reportamos acima – no que tange às sobras líquidas – aplicam-se apenas aos resultados decorrentes da prática de atos cooperativos, por expressa vedação legal no que tange à distribuição do resultado advindo de atos não-cooperativos aos cooperados, conforme abordaremos mais adiante.
Por outro lado, no que se refere aos resultados negativos das Sociedades Cooperativas, a determinação legal é de que o mesmo seja rateado entre os cooperados, independentemente de sua procedência, mas com algumas alterações na sistemática aplicada aos resultados decorrentes de atos não-cooperativos, como demonstraremos a seguir.
2. DESTINAÇÃO DOS RESULTADOS DE ATOS NÃO-COOPERATIVOS
Conforme tivemos a oportunidade de mencionar na exposição do tópico anterior, as Sociedades Cooperativas são constituídas com a finalidade de prestar serviços para seus associados.
Todavia, a Lei das Cooperativas admite que as cooperativas pratiquem atos com terceiros não-cooperados, portanto, estranhos às finalidades para as quais tenha sido constituída. São os chamados atos não-cooperativos (arts. 85, 86 e 88, da Lei das Cooperativas).
Com isso, o artigo 87, da Lei das Cooperativas, exige desde logo que os resultados apurados em operações com não-cooperados, em consonância com as disposições dos artigos 85 e 86, sejam levados à conta de FATES.
Isto porque as cooperativas não têm escopo lucrativo, de forma que os resultados auferidos com operações estranhas ao seu objeto devem ser, de alguma forma, revertidos para os fins cooperativistas. Por determinação legal, portanto, tais resultados serão revertidos para assistência aos cooperados e seus dependentes.
Na concepção de Guilherme Krueger, esta determinação legal visa corrigir o desvio de finalidade tolerado pela lei, conforme podemos depreender do excerto abaixo copiado:
“Os arts. 87 e 88, parágrafo único, entretanto comandam que os resultados positivos obtidos por essas operações sejam integralmente revertidos ao FATES. Se tais operações não consubstanciam a fruição de serviço da cooperativa pelo associado, decorrência da identidade cooperativa, este dispositivo corrige o desvio tolerado em favor da capacidade ótima da cooperativa ao impor como destino dos resultados a assistência técnica, educativa e social aos associados. Neste passo, a indivisibilidade do Fundo tem função de impeço para a distribuição de lucros disfarçados, em contrariedade ao disposto no art. 24, § 3º da Lei 5.764/71.”. (grifos no original)
Portanto, conclui-se que o resultado decorrente da realização de atos não-cooperativos, quando positivo, deve ser levados à conta de FATES. Caso o resultado seja negativo, resultando em perda, deverá ser absorvido pela sobra do ato cooperativo.
Caso as sobras do ato cooperativo não forem suficientes, o saldo será levado ao Fundo de Reserva e, havendo saldo negativo remanescente, será rateado entre os próprios cooperados, seguindo o princípio insculpido no artigo 80, da Lei das Cooperativas, que determina que as despesas serão cobertas pelos associados mediante rateio na proporção direta da fruição dos serviços.
É este o entendimento do Conselho Federal de Contabilidade, que nas orientações contidas na NBC T 10.21, especificamente no item 2.6, determina o quanto segue:
“10.21.2.6 – O resultado líquido decorrente do ato não-cooperativo, quando positivo, deve ser destinado para Reserva de Assistência Técnica, Educacional e Social, não podendo ser objeto de rateio entre os associados. Quando negativo, deve ser absorvido pelas sobras do ato cooperativo. Se estas forem insuficientes, o saldo será levado à Reserva Legal e, havendo saldo remanescente, será rateado entre os associados na forma do estatuto social e legislação específica”.
Devemos salientar, no entanto, que com a edição do Código Civil de 2002 (CC 2002), abriu-se uma discussão acerca da possibilidade de distribuição dos resultados positivos decorrentes de atos não-cooperativos, em razão de uma interpretação, a nosso ver extremamente ampliativa, do inciso VII, do artigo 1.094, deste diploma legal. Vejamos:
“Art. 1.094. São características da Sociedade Cooperativa:
(…)
VII – distribuição dos resultados, proporcionalmente ao valor das operações efetuadas pelo sócio com a sociedade, podendo ser atribuído juro fixo ao capital realizado.”. (grifamos)
A partir desta redação, temos conhecimento que determinados autores passaram a defender a possibilidade de distribuição dos resultados positivos decorrentes de atos não-cooperativos, sob a argumentação de que a expressão “distribuição dos resultados” abarcaria não apenas as sobras/perdas, mas todo e qualquer resultado gerado pela Sociedade Cooperativa.
Em nosso entendimento, esta não é a melhor interpretação a ser dada ao mencionado dispositivo, tendo em vista que tal interpretação, que julgamos, conforme já mencionado, deveras ampliativa, subtrairia das cooperativas o seu caráter de entidade não lucrativa.
Entendemos que, ao dispor sobre a distribuição do resultado, quis o legislador referir-se apenas à distribuição de sobras e rateio de perdas, ambas vinculadas aos denominados atos cooperativos.
Alcançamos esta conclusão através de uma análise sistemática da legislação vigente no que se refere às Sociedades Cooperativas. Vejamos os principais pontos enfrentados:
1. Sociedades sem Objetivo de Lucro: As Sociedades Cooperativas, por expressa determinação do artigo 3º, da Lei 5.764/71, são constituídas sem a finalidade de obtenção de lucro, e em proveito comum dos associados. Isto é, a cooperativa é criada com um propósito específico de prestar serviços aos seus associados, de forma que permitir a distribuição dos resultados auferidos com atividades estranhas a esta finalidade, seria admitir-se o desvio de finalidade das cooperativas.
2. Constituídas para Prestar Serviços aos Associados: Conforme mencionamos no item anterior, a cooperativa é constituída com um fim específico, qual seja, prestar serviços para seus cooperados. Muito embora seja admitida a realização de operações com terceiros não-cooperados, os frutos deste “desvio consentido de finalidade” devem ser revertidos em favor dos fins cooperativistas.
Por tudo isso, concluímos que a interpretação do artigo 1.094, inciso VII, do CC 2002, deve ser no sentido de que a expressão “distribuição dos resultados” abrange apenas os resultados decorrentes da realização de atos cooperativos, ou seja, as sobras e as perdas, mantendo-se a disciplina jurídica da Lei das Cooperativas, neste particular.
Portanto, as cooperativas podem praticar atos não-cooperativos, mas uma vez que não têm escopo lucrativo, não podem distribuir aos seus associados os resultados auferidos em atividades não-cooperativas, devendo tais resultados serem integralmente revertidos ao FATES (se positivos), como forma de destinar o “lucro” às atividades cooperativistas.
3. A QUESTÃO DOS ATOS COOPERATIVOS AUXILIARES
A grande controvérsia no que diz respeito à destinação dos resultados das Sociedades Cooperativas, contudo, surgirá quando for feita a análise acerca da possibilidade de distribuição das sobras decorrentes dos chamados atos cooperativos auxiliares, ou ainda do procedimento a ser adotado para absorção das perdas do exercício decorrentes destes mesmos atos.
Desta forma, julgamos interessante tecer algumas breves considerações acerca dos atos cooperativos auxiliares, antes de emitirmos nossa opinião acerca da destinação dos resultados decorrentes destes atos. Vejamos.
A Lei das Cooperativas não tratou de forma adequada os atos cooperativos, de maneira que restaram muitas dúvidas no que diz respeito ao alcance da mencionada expressão. Neste sentido, Renato Lopes Becho manifestou-se afirmando que o conteúdo do artigo 79 da Lei no 5.764/71, que traz o conceito legal de ato cooperativo, é incompleto e insuficiente.
Desta forma, ficou a cargo da doutrina jurídica e do Poder Judiciário a definição de ato cooperativo e ato não-cooperativo, determinando, com isso, o alcance de cada um deles.
Por definição doutrinária, e em breves palavras, atos cooperativos são aquelas operações para as quais a cooperativa foi criada, e que são realizadas entre a cooperativa e os cooperados. São os chamados atos-fim da cooperativa. Por outro lado, os atos não-cooperativos são aqueles realizados por uma cooperativa com terceiros não-cooperados, logo, estranhos às finalidades para as quais tenha sido constituída.
Neste ponto, Renato Lopes Becho conclui:
“Deixe-se consignado que os atos não-cooperativos deverão ser, para nós, classificados como negócios principais, só que realizados com não associados”. (grifamos)
Assim, pela definição de Renato Becho, apenas serão considerados atos não-cooperativos aqueles praticados com terceiros não-cooperados que se fossem realizados com associados seriam atos cooperativos. Todos os demais (excluindo-se os próprios atos cooperativos) classificam-se como atos cooperativos auxiliares.
Neste sentido, andou melhor o legislador argentino, que ao tratar das Sociedades Cooperativas determinou que são atos cooperativos os realizados entre as cooperativas e seus associados e por aquelas entre si em cumprimento do objeto social e à consecução dos fins institucionais. Também o são, a respeito das cooperativas, os atos jurídicos que com idêntica finalidade realizem com outras pessoas.
Ou seja, todos os atos praticados entre a cooperativa e terceiros, desde que em cumprimento do objeto social, ou destinados à consecução dos fins institucionais – além daqueles praticados entre a cooperativa e os próprios cooperados – são considerados atos cooperativos, pela legislação argentina.
Contudo, no Brasil a Lei das Cooperativas, em seu artigo 79, determina que se denominam atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associadas, para a consecução dos objetivos sociais.
E mais, pela dicção dos artigos 85, 86 e 88, do mesmo diploma legal, ficam possibilitadas as cooperativas de praticar atos com terceiros não-cooperados, sem que sejam mencionadas, em qualquer momento, as expressões “atos não-cooperativos” ou “atos cooperativos auxiliares”.
Com isto, o Poder Judiciário passou a aplicar uma interpretação restritiva à legislação vigente, concluindo que toda operação realizada por Sociedades Cooperativas, e que não se coadune literalmente com os dizeres do artigo 79 da Lei das Cooperativas, será considerada como ato não-cooperativo.
Esta mesma interpretação restritiva foi aplicada pelo CFC, ao aprovar a NBC T 10.21, que em seu item 4.2. determina o quanto segue:
“10.21.4.2 – A movimentação econômico-financeira das entidades Cooperativas Operadoras de Planos de Assistência à Saúde deverá ser segregada em decorrência de ato cooperativo, representado por aquele decorrente da atividade-fim da entidade, e não-cooperativo, para as demais atividades.”. (grifamos)
Em face do exposto, entendemos que as definições e alcance dos atos cooperativos e não-cooperativos não possam ser tão restritivas quanto pretende o Poder Judiciário, devendo ser conferido aos resultados decorrentes da realização de atos cooperativos auxiliares o mesmo tratamento aplicado aos atos cooperativos, já demonstrado em momento oportuno.
4. CONCLUSÃO
Tendo em vista todas as considerações expostas no decorrer deste estudo, passamos a apresentar, de forma resumida, todas as conclusões no que diz respeito à destinação dos resultados do exercício das Sociedades Cooperativas.
I. Resultado de Atos Cooperativos
(i) Positivos – as sobras serão distribuídas para os cooperados, na razão das operações realizadas por cada associado, a menos que a Assembléia Geral decida por outra destinação, lembrando-se que tal distribuição só poderá ser realizada após as destinações legais ao Fundo de Reserva e ao FATES, e outros fundos eventualmente criados pela Assembléia Geral.
(ii) Negativo – as perdas deverão ser levadas ao Fundo de Reserva e por ele absorvidas. Caso o Fundo de Reserva não se mostre suficiente para a absorção das perdas do exercício, o saldo deverá ser rateado pelos cooperados.
II. Resultado de Atos Não-Cooperativos
(i) Positivo – os lucros decorrentes da realização de atos não-cooperativos devem ser integralmente destinado ao FATES, por força das disposições do artigo 87, da Lei das Cooperativas.
(ii) Negativo – os prejuízos apurados na realização de atos não-cooperativos devem ser absorvidos pelas sobras do ato cooperativo. Caso estas sobras sejam insuficientes, o saldo será levado à conta de Fundo de Reserva, e por ele absorvidos. Se, ainda assim, o Fundo de Reserva não for suficiente para absorver os prejuízos do exercício, o saldo remanescente deverá ser rateado pelos cooperados.
Cumpre frisar que há controvérsia doutrinária no que diz respeito à possibilidade de distribuição do resultado de atos não-cooperativos, em virtude das disposições contidas no artigo 1.094, inciso VII, do CC 2002, mas nosso entendimento é no sentido de que tal distribuição é proibida, pelo caráter de não finalidade lucrativa das cooperativas.
III. Resultado de Atos Cooperativos Auxiliares
Em nosso entendimento, aos resultados decorrentes da realização de atos cooperativos auxiliares deve ser conferido o mesmo tratamento dado aos atos cooperativos, tendo em vista que, embora praticados com terceiros não-cooperados, também estes atos têm a finalidade de auxílio mútuo, isto é, de beneficiar os cooperados.
Frise-se apenas que o Poder Judiciário aplicou uma interpretação muito mais restritiva, afirmando que todos os atos que não se enquadram literalmente no conceito de ato cooperativo, previsto no artigo 79, da Lei das Cooperativas, devem ser considerados atos não-cooperativos. Desta forma, na visão do Judiciário, aplica-se aos resultados decorrentes da realização de atos cooperativos auxiliares o mesmo tratamento conferido aos resultados de atos não-cooperativos.